O Globo

o-globo-logo-principalEsta segunda-feira quem não leu O Globo, não sabe o que perdeu.

Para quem gosta de política, a coluna do Ricardo Noblat, simplesmente, impecável e brilhantemente didática (ler aqui).

E, genial, no segundo caderno, na página 6, Raphael Montes e o seu “depoimento nº 003” (texto abaixo).

Para quem tem sensibilidade depurada, e tem sempre um pé atrás quando o tema é o ser humano, a coluna do Ancelmo Gois é um oásis. O tema em questão, tem como título, “O SER HUMANO NÃO É FÁCIL” (texto abaixo).

Claro que, sobre futebol, passei batido…


DEPOIMENTO Nº 003

Nunca fui falsa comigo. E isso me consola. Sabia que não seria feliz. Aceitar a aliança de Douglas foi como assinar um tratado de monotonia

 Casar com Douglas foi um ato de desespero. Ou de redenção, não sei. Eu já estava fazendo trinta anos, o senhor entende? E chega uma idade em que a gente precisa dar um rumo pra vida. As pessoas são cruéis. As pessoas comentam. Lucia vai morrer sem ninguém. Lucia é independente. Cadê seu namorado que conhecemos na última festa, querida? Difícil suportar.

Conheci e namorei Douglas em um mês. Eu não gostava dele. Ele chupava uma bala de tamarindo fedida cujo cheiro impregnava na língua. Odeio tamarindo. Mas ele tinha um monte delas no bolso. E sempre as chupava. Chupava e me oferecia. Nunca aceitei.

Também nunca aceitei seus carinhos, presentes, perguntas ou sorrisos. Eu fazia cara feia e reclamava de tudo. Jamais fingia orgasmo. Em minha defesa, devo dizer que nunca fui falsa com ele. Mas Douglas sorria. Sorria e dizia gostar daquele meu jeito. Você é muito sincera, Lucia, mas amo você assim. Vai entender. Amava mesmo.

Nunca fui falsa comigo também. E isso me consola. Sabia que não seria feliz. Mas estabilidade é mais importante do que felicidade, não acha? Aceitar a aliança de Douglas foi como assinar um tratado de monotonia. Nos casamos e fomos morar em Copacabana. Ele acordava às seis e saía para comprar jornal. Caminhava no calçadão e comprava balas de tamarindo numa mendiga da praça Inhangá. Jogava na loteria com a mesma sequência numérica (as datas de aniversário da mãe e do pai — que Deus os tenha). Voltava com um livro velho comprado no sebo lá perto de casa. Passava o café, refestelava-se na poltrona, fazia palavras cruzadas, chupava as malditas balinhas. Quarenta anos se passaram assim, sem eu me dar conta.

No início, era mais fácil. Ele trabalhava no Banco do Brasil e só voltava de noite. Eu podia ficar em casa e ver tevê sem ouvir o tilintar irritante da bala de tamarindo batendo em seus dentes, sendo revolvida pela língua, prendendo-se no céu da boca. Com a aposentadoria, todos os dias eram como o domingo. A rotina matinal se repetia de tarde e de noite. E a casa se entupia de jornais, bilhetes de loteria, livros velhos e balas de tamarindo. Um cheiro agridoce e poeirento dominava os móveis. Mas eu estava disposta a viver assim. Tinha aceitado minha sina. Aos setenta anos, a gente já não quer mais mudar as coisas. Temos o consolo de que falta pouco para acabar. Basta ter paciência.

Douglas me surpreendeu uma única vez na vida. Quando acordei, ele não estava na poltrona, fazendo palavras cruzadas e chupando balas de tamarindo. Em vez disso, enchia uma mala velha com mudas de roupa e alguns documentos. Assustou-se quando me viu acordada, mastigou uma bala de tamarindo e murmurou:

— Vou embora.

Pensei que estivesse sonhando. Douglas não se deteve e passou o zíper na mala quase vazia.

— Conheceu alguma garota novinha? — perguntei. Não estava com ciúmes, só queria entender.

— Não conheci ninguém. Apenas não quero mais te fazer infeliz.

Depois de quarenta anos?, eu quis perguntar. Levantei-me da cama e fui ao banheiro lavar o rosto. Nada fazia sentido. Quando voltei, a mala já estava na soleira da porta.

— Não vai levar seus livros e jornais velhos?

— Se puder empacotá-los, busco depois.

— E as balas de tamarindo?

— Pode jogar fora.

— Vai deixar o apartamento para mim?

— Não seria capaz de tirá-lo de você. Pode ficar com o Fusca também.

Jogou o molho de chaves sobre a poltrona em que se sentara por quarenta anos.

— Vai ficar onde?

— Na casa de algum amigo.

— Você não tem amigos.

Ele sorriu, embaraçado, mas logo retrucou:

— Ficarei em algum hotel então. Copacabana é cheio deles.

A velhice deve estar me deixando um tanto lerda. Demorei a concluir o óbvio. Pedi um instante a ele e fui à cozinha. O jornal do dia estava sobre a bancada da pia, como sempre. Alguns hábitos não se perdem. Confirmei os números da loteria. As datas de nascimento dos pais dele. Vinte milhões acumulados.

Peguei o revólver velho guardado na cômoda do nosso quarto e dei três tiros no peito de Douglas. Quando o sangue saiu, cheirava a tamarindo. Ao revolver seus bolsos, encontrei o bilhete premiado. Rasguei-o antes de a polícia chegar. Não queria o dinheiro. Os jornais me chamaram de velha maluca. Me colocaram em prisão preventiva como se eu pretendesse fugir para algum lugar. Não quero fugir. Sou paciente. Logo que cheguei na cadeia, fiz duas amigas. São meninas moças, simpáticas, mas lésbicas. Gostam de mim e me trazem presentes. Parece ironia: essa semana, me ofereceram balas de tamarindo. Numa provocação a mim mesma, aceitei provar. E quer saber? Gostei.

Raphael Monte – Jornal O Globo – página 6, segundo caderno – 09/05/2016


O ser humano não é fácil

Eike Batista, quando estava por cima da carne seca, deu R$ 22 milhões para ajudar na elaboração do projeto da candidatura do Rio para ser sede das Olimpíadas. Em 2009, ele cedeu o jatinho que levou a delegação brasileira à Dinamarca, para a escolha da sede dos Jogos. Agora, por baixo, é solenemente ignorado. Não foi convidado para nenhum evento, nem mencionado pelas autoridades ou pelo Comitê Organizador.

Ancelmo Gois – Jornal O Globo – página 10 – 09/05/2016