Uma terça-feira para marcar a minha vida

Ontem, lá fui eu para a reunião do Conselho Deliberativo do Flamengo. Na pauta, de novo, o assunto do shopping e, nas entrelinhas, um caminho sutil para me apontar como culpado pelo dinheiro que o Flamengo, pelo acordo realizado entre as partes, está pagando ao consórcio que deveria ter colocado o shopping em pé e, ao invés disso, de forma astuta, usufrui daquilo que, na realidade, deveria estar pagando.

Ontem, após ouvir algumas barbaridades proferidas por pessoas sem a menor sensibilidade e de caráter duvidoso, uma delas inclusive com a responsabilidade de julgar e definir a vida de seres humanos, já que desembargador é, resolvi deixar de ouvir e dizer o que estava dentro da alma.

Pedi que as pessoas tivessem a coerência, como ponto de avaliação para qualquer julgamento.

Relatei a minha chegada ao clube em 95, quando encontramos uma verdadeira calamidade. Os 600 funcionários, além dos profissionais, estavam completando quatro meses de salários não recebidos. Como entrar no clube, como começar olhando nos olhos desta gente e vendo tanto sofrimento? Como, na condição de “patrão”, determinar, comandar, sendo devedor e não cumpridor das suas obrigações básicas?

Aí, três pessoas, Plínio Serpa Pinto, Jorge Rodrigues e eu, com recursos próprios, até porque, nos cofres do clube nada havia, colocamos os salários de todos os funcionários e profissionais, rigorosamente em dia e, assim foi até o último dia da nossa administração, em 31 de dezembro de 1998.

Este dinheiro que emprestei ao Flamengo me foi devolvido quatro anos após e sem um único centavo de juros.

Ao longo de quatro anos como presidente, e outros tantos como vice de futebol, viajei muito a serviço do Flamengo mundo afora, em que TODAS as passagens aéreas e estadias foram pagas com meus próprios recursos, pois sempre esteve em mim que servir ao Flamengo era um sacerdócio, uma missão de alma, uma doação.

Contei o caso de um malfeito por parte de uma pessoa que havia eu colocado para ocupar interinamente o lugar do nosso vice-presidente de finanças que, por motivos profissionais se mudara para Portugal. Esta pessoa, contrariando determinação minha, para ajudar um amigo, autorizou um pagamento que havíamos decidido não pagar, pois era um assalto ao clube. Quando fui informado do fato, tomei duas atitudes. Afastei a pessoa e ressarci o Flamengo.

Após fazer estas colocações perguntei aos presentes se havia coerência entre o que estava eu sendo acusado e o meu comportamento como dirigente do clube. Como alguém pode ser irresponsável e negligente em assunto tão importante, se no dia a dia, comprovadamente, foi cuidadoso e responsável ao extremo?

A segunda parte da minha mensagem aos conselheiros foi relatar fielmente o ocorrido.

Dos seis milhões aportados pelo Consórcio, 800 mil eram referentes a adiantamento feito pela gestão anterior e cinco milhões e duzentos foram destinados a resolver a penhora importante e comprar o passe de Edmundo.

Estava eu na Espanha, a serviço do Flamengo, quando recebi um telefonema de Michel Assef e Getúlio Brasil, informando que os dirigentes do Consórcio Plaza haviam decidido só liberar o dinheiro se nós déssemos a eles, caso o Shopping não fosse aprovado, o passe do jogador, como garantia, e que a decisão deles era irrevogável.

O problema era gravíssimo, pois os cheques para a Parmalat – e para salvar os apartamentos no caso da penhora – foram emitidos e entregues a quem de direito e o vencimento para dois dias depois.

Claro que usaram a nossa fragilidade para obter uma vantagem, nos colocando “numa sinuca de bico”.

No final do dia, após várias conversas, fizemos o exercício do que poderia ser o pior cenário, que seria a não aprovação do shopping e, concluímos que ainda assim, não seria de todo ruim, pois teríamos utilizado por um bom tempo e, sem qualquer custo, o melhor jogador em atividade no Brasil, teríamos quitada a dívida de 800 mil contraída pela gestão anterior e, teríamos resolvido o problema da penhora.

O melhor cenário, apenas relembrando, era o shopping aprovado e, neste caso, automaticamente tudo incorporado ao patrimônio do Flamengo.

Para manter a dignidade do clube, evitando o escândalo que dois cheques voadores poderiam causar, informamos aos diretores do Consórcio que entregaríamos o documento, inclusive com o “de acordo” do jogador.

Deixei a presidência do clube em dezembro de 98. O shopping, foi oficialmente e definitivamente aprovado em setembro de 99, quando o Governador Anthony Garotinho sancionou, finalmente, o projeto (reprodução do diário oficial abaixo). Ali, naquela data, por contrato, na cláusula 3.1, o Flamengo estava, oficialmente, incorporando todos os benefícios aqui citados, ao seu patrimônio.

Última etapa: Governador sanciona projeto. Shopping totalmente aprovado (17/11/1999).

Com tudo transcorrendo dentro da maior normalidade, dois meses após sancionar o projeto, o Governador Garotinho jantando com algumas pessoas, ouviu de José Isaac Perez, presidente do Consórcio Plaza que havia ele, Perez, subornado a câmara de vereadores para aprovar o projeto (ler coluna do Boechat abaixo). Atônito, ante bombástica revelação, o Governador ligou para o ex-presidente Gilberto Cardoso, seu amigo de longa data, desde a época de Campos, informando que, ante tamanho escândalo, revogaria sua decisão e, assim o fez.

Início do fim. Ricardo Boechat anuncia o fim do Shopping (18/12/1999).

O contrato entre Flamengo e o Consórcio estava em pleno vigor. A revogação por parte do governador, tornou, consequentemente, o contrato nulo. Pergunta: Quem deu causa ao rompimento do contrato?

A resposta é óbvia e, ao invés de incursionar no judiciário, contra o Consórcio, reivindicando seus direitos, a diretoria do Flamengo nada faz. O tempo passa e, os poderosos empresários do Consórcio entram com uma ação contra o Flamengo, reivindicando os seis milhões de volta. A direção do Flamengo, ao invés de enfrentar, até porque o direito era pra lá de bom, afirma em juízo, como tese de defesa, que o clube não tinha responsabilidade alguma, pois este assunto deveria ter passado pelo Conselho Deliberativo e, isto não havia sido feito. Incrível, ridículo, criminoso, mas esta foi a nossa defesa. Pergunto: que culpa tenho ante tamanha barbaridade? Pergunto mais: por que o Flamengo não acionou em momento algum o Consórcio, por perdas e danos?

Contei também para os conselheiros, episódio triste, ocorrido, se não me falha a memória, em 2007, em que era eu vice de futebol. A situação financeira do clube, caótica. O presidente Márcio Braga mal de saúde, e os salários dos jogadores em atraso quase chegando ao limite do suportável.

Havia um jogo programado para uma quarta-feira e, no dia anterior, na concentração os jogadores resolveram que não iriam para o jogo no dia seguinte. Fui avisado por Fábio Luciano, indo imediatamente para o local da concentração, onde nos reunimos e, me foi dado o prazo, até às 16h de quarta-feira para que os depósitos fossem feitos nas contas dos jogadores, caso isto não ocorresse, todos iriam embora e não haveria jogo.

Como um louco, corri atrás do dinheiro e consegui um empréstimo de quase seis milhões e, às 15h, todos os depósitos foram feitos. Assim foi evitada uma mancha irrecuperável na imagem do Flamengo. Já imaginaram as manchetes, se o jogo não tivesse ocorrido?

Aí, também não havia tempo para juntar o Conselho e, é bom lembrar que, qualquer mútuo, pelo estatuto, só pode ser feito com a aprovação do Conselho.

Perguntei o que faria cada um deles. Deixar o Flamengo ir para outra página que não a esportiva, no que seria o maior “mico” de uma história pra lá de centenária ou, tomar a decisão que tomamos?

A ação de regresso contra mim foi arquivada, com o plenário votando favoravelmente e, em sintonia como havia se manifestado a vice-presidência jurídica do clube.

No encerramento, contei o caso do ator Mário Gomes, que em 1977, no auge de sua carreira, foi vítima de inominável cafajestada, com uma notícia plantada, segundo dizem, por um marido traído.

A notícia foi a de que Mário Gomes dera entrada na emergência do hospital Miguel Couto, com uma cenoura entalada em seu ânus. A partir daí, Mário Gomes, virou “Mário Cenourinha” e sua vida desmoronou. Hoje, vende sanduíche na praia e diz que carrega o peso desta cenoura maldita até hoje. A minha cenoura, foi este shopping center. Também maldito e recheado também por cafajestes e cafajestadas, internas e externas.

Como disse o sobrevivente Mário Gomes, em recente entrevista, “o que não mata, engrandece”. Continuo vivo. Ontem, a penúltima etapa vencida. Resta agora, o Conselho de Administração. Vamos pra lá. Quem não deve, não teme.

Obrigado, de coração, a tantos e tantos companheiros de luta no Flamengo, pelo apoio incondicional, pelo amor e, pelo carinho de sempre.

Ontem, quando subi à tribuna, sendo o último orador inscrito, lembrei muito da minha genial professora de fonoaudiologia, Glorinha Beuttenmüller, quando ainda garoto, na Rádio Tupi, pedi uma dica para para me comunicar com sucesso. A resposta, genial e pragmática, me marca profundamente até hoje:

“SEJA SINCERO”!