JOÃO SALDANHA. JOÃO SEM MEDO. JOHNNY…

Gilson Ricardo lançou e, na Rádio Globo, João Saldanha, o comentarista que o Brasil consagrou, deixou de ser João, para ser Johnny. E, para quem não sabe, ele até que gostava de ser assim chamado. Isto era intimidade.

Digo isto pelo fato de perceber que alguns “companheiros”, na maior cara de pau, vivem apregoando uma intimidade com o nosso doce e querido personagem que, a bem da verdade, só existiu na imaginação de quem tenta se aproveitar e pegar uma carona na imagem do João.

Viajei o mundo inteiro com o nosso Johnny, dividi até cama de casal com ele e, sou obrigado a aturar estas criaturas com visíveis sinais de deformação de caráter. Cuidado “companheiros”, algum dia vocês podem reencontrar o João e aí, o pau pode comer…

Hoje, 3 de julho de 2017, João Saldanha estaria completando 100 anos. Portanto, hoje é o centenário de uma das mais carismáticas e geniais figuras do mundo do futebol.

João, com uma cultura geral invejável, foi o rei do pragmatismo, o campeão do poder de síntese, a simplicidade em forma de gente e, tudo isto, com muito charme.

Figura humana especial, que em diversas oportunidades deixava, em viagens ao exterior, suas suadas diárias para brasileiros que passavam aperto em função do exílio e, na maioria das vezes, pessoas que sequer conhecia.

João Máximo, com o brilhantismo de sempre, conseguiu sintetizar com clareza quem foi João Saldanha ao escrever para O Globo, afirmando que “João Saldanha era vários Joões em um só”.  Íntegro, leal, amigo dos amigos, culto, generoso, simples, doce, contundente, pavio curto, corajoso, afetivo, brigão, despojado, charmoso e, o maior contador de história que o rádio já produziu.

Certa vez, viajávamos ele, eu e Fernando Versiani e, em pleno voo, Fernando observou que a calça jeans do João estava muito surrada, perdendo a tonalidade azul. João chamou a comissária, pediu uma caneta Bic e, durante um bom tempo foi revigorando o azul na sua calça com a tinta da caneta emprestada…

E, por falar em viagem, João não levava mala. Era uma malinha de mão, com duas cuecas e duas mudas de roupa. Ocupava o tempo de folga nas viagens procurando sempre conhecer algo novo. Não comprava nada. Gastava o dinheirinho das diárias alimentando a alma.

Através de longas caminhadas João me apresentou Paris, cidade pela qual sou apaixonado. Andar em Paris, para João, era como se estivesse no Rio ou em Alegrete, conhecia tudo, “inclusive, tudo”!!!

Aliás, houve uma única oportunidade em que, por ter recebido encomenda de um dos filhos, comprou duas garrafas térmicas na zona franca de Manaus. Quando foi passar pela fiscalização foi informado de que só poderia passar uma única unidade, que era lei. João ainda tentou argumentar, dizendo que as garrafas eram encomenda dos filhos e, apresentando as notas, mostrou que havia gasto muito pouco e longe estava do valor permitido. O fiscal, irredutível, disse que uma das garrafas lá teria que ficar. João olhou pra ele com cara de poucos amigos e, jogando e quebrando a garrafa no chão, disse: “Pode ficar pra você”…

Alguns companheiros, em especial os mais gozadores, diziam que João adorava inventar histórias, que era mentiroso e acreditava na própria mentira.

Certa vez, chegamos a Londrina, João, Cury, João Fogueira – nosso engenheiro de som – e eu. Pegamos um táxi. Cury na frente, nós três atrás. No caminho para o hotel, João falou sobre um determinado prédio histórico, se não me equivoco, onde há algum tempo atrás funcionou uma Universidade, afirmando que ficava do lado oposto ao estádio. O motorista disse que João estava enganado, que o tal prédio ficava ao lado do estádio. Jorge Cury, que adorava provocar João, pediu que ele se mancasse e não discutisse com um motorista profissional e, local.

O motorista se encheu de gás e disse que era meio que uma ofensa discutir este assunto com ele, motorista há mais de vinte anos e, sempre em Londrina. Enquanto Cury morria de rir, João, já emputecido, se dirigiu ao motorista, dizendo: “Se você tem tanta certeza, vamos fazer uma aposta. Se o prédio estiver onde você diz estar, pago sozinho a corrida e, em dobro. Se estiver onde afirmo estar, a corrida é de graça”. Aí, Cury riu mais ainda, dizendo tratar-se de uma verdadeira barbada para o motorista, que após rodar por 20 minutos, quase perdeu a cor ao se deparar com o prédio exatamente onde João disse que estava. Cury agora ria de alegria, pois a corrida havia ficado de graça e, como gostava ele de uma moleza…

João, todo prosa, contou a história para Deus e o mundo, sempre chamando a mim e ao João Fogueira como testemunhas. Contei este fato para dizer que, além de tudo, da genialidade, João tinha memória fotográfica. Se fosse espião seria melhor do que o agente 007.

E, por falar em James Bond, a mais britânica sacada de todos os tempos foi de um brasileiro. Entrevistado pela BBC, João teve que ouvir de companheiros ingleses que o futebol sul-americano era violento e praticado por bandidos. João ouviu, e sem perder a elegância, disse: “Bandidos são vocês ingleses. A Scotland Yard ficou famosa prendendo freiras?” A entrevista terminou aí e, entrou para a história do jornalismo mundial.

João sempre foi um apaixonado pelo craque, embora tenha sido sempre elegante – menos em uma oportunidade, que depois eu conto – a ponto de jamais afirmar que um determinado jogador era ruim, era perna de pau. Preferia dizer que, “mais uma vez, fulano de tal, não esteve em uma tarde inspirada…” O craque era a sua paixão. João, na primeira convocação como treinador da Seleção Brasileira, no estúdio da TV Continental, em Laranjeiras, além de convocar, escalou o time titular. Esta matéria que fiz com ele, não dá para esquecer. Foi em 1969, ano em que eu começava na Rádio Tupi e, honrado, fui escalado por Doalcey Camargo para esta adorável missão. A tese de João Saldanha, de que futebol é momento e, a de que compete ao treinador encontrar um jeito de colocar os melhores em campo, está viva até hoje na cabeça de cada torcedor brasileiro.

A única vez que João deixou de ser elegante, foi genial. Em uma excursão da Seleção Brasileira pela Europa, em Cardiff, onde vários jogadores estavam estreando. O primeiro tempo terminou, fiz as reportagens e retornei para o Cury. Ato contínuo, com aquele vozeirão, anunciou: “e agora, com vocês, o comentarista que o Brasil inteiro consagrou”… Vinhetinha… João Saldanha… – antes de continuar, quero chamar a atenção de todos com relação a hábitos e costumes da época, onde ninguém imaginava falar um palavrão no rádio que, era mesmo nas transmissões esportivas, um veículo cerimonioso –  Muito bem, aí, o João sai com essa; “Meus Amigos… Vocês estão querendo saber o que eu achei dos novatos na seleção? UMA BOSTA!!! UMA BOSTA!!!”

Não acreditei no que estava ouvindo. Saí comentando com todos os companheiros de outras rádios e, o pior é que ninguém acreditava que fosse verdade.

Em 1983, a Klefer foi fundada e, a nossa primeira ação foi uma integração nacional através do Rádio e, via Embratel, “ao vivo e a cores”. Os grandes astros do futebol: João Saldanha, Jorge Cury, Zico, Sócrates, Falcão, Armando Marques, Raul, Carlos Alberto Parreira, Gérson “Canhotinha de Ouro” e Carlos Alberto Torres, viviam no nosso estúdio, na Glória, montado pelo genial Formiga, craque das carrapetas.

O estúdio, na realidade, era parte da nossa sede, pequena, mas aconchegante. O maior freguês foi o João, que adorava ir pra lá e ficar jogando conversa fora e, quantas e quantas vezes tirou uma soneca após o almoço, num sofazinho que ficava no corredor… Ali, conversamos muito sobre tudo que se possa imaginar, inclusive futebol. Johnny, para mim, como aprendizado de vida, foi primário, ginásio, clássico, faculdade e mestrado. Mestre de vida, de bola. Mestre de mundo…

Sem medo de errar, e certo de que não estou cometendo nenhuma injustiça, João Saldanha, o nosso Johnny, foi o mais carismático ser com quem convivi. E, aprendi. Muito!!!

Ia contar a história da baianinha do Acarajé, a linda Maria. Fica para outro post.

Valeu, João!!! Nos seus 100 anos, a alegria por ter tido o privilégio de ter convivido com você é toda nossa…

VIVA JOÃO!!! VALEU, JOHNNY!!!… Um dia nos encontramos… Tomara!!!