O câncer do Tio Sam

Em 1971, começando na Rádio Tupi, ganhei do chefe da equipe de esportes, Doalcei Camargo, um presente de Natal antecipado.

O Bangu, que era forte naquela época, ia para uma excursão de um mês e meio aos Estados Unidos, com tudo sendo organizado pela Federação americana.

Naquela época, por lei, qualquer delegação brasileira para sair do país era obrigada a levar um jornalista. Afonso Soares, monstro de comunicador e comentarista, estava escalado para esta maravilhosa missão, só que teve um problema de saúde e, em cima da hora, a viagem caiu no meu colo.

A excursão em si foi simplesmente espetacular. Começamos em Seattle, onde o time local era dirigido pelo ex-muito bom goleiro do Vasco, Miguel, que chorou a mim abraçado, momentos antes do jogo, ouvindo o nosso hino.

Esta viagem ou, aventura, foi marcada por fortes emoções e, some-se o fato de ter sido aquela a minha primeira viagem internacional. Nenhuma faculdade me lapidaria melhor do que aquele mês e meio ou, um pouquinho mais. Digo isto não só pelo aspecto profissional, pois, a bem da verdade, como ser humano vivenciei um verdadeiro intensivo…

Talvez um dia, em um livro, conte as inúmeras histórias incríveis proporcionadas por esta viagem. Neste momento, motivado pelo drama de parte do povo americano e do mundo, reagindo ao brutal assassinato de um rapaz negro, George Floyd, por parte de um policial branco, conto o seguinte episódio:

Em Nova York, ficamos hospedados no New Yorker Hotel que, não sei se ainda existe. O hotel era grande e bonito. Dei azar que o frigobar do meu apartamento não estava funcionando e, como deu vontade de tomar uma cervejinha, desci e resolvi procurar um bar. Na portaria, me informaram que na terceira rua à esquerda, havia um muito bom. Errei na contagem e entrei na segunda rua, onde também havia um bar. Entrei e notei que estava cheio, pois o som de gente falando alto e rindo era marcante. Na medida em que me encaminhava para o meio do salão, onde havia um enorme balcão com alguns bebendo em pé e outros sentados, fui sentindo o som ir diminuindo, até chegar a zero.

Quando dei por mim, percebi que era um bar onde só havia negros. Sem jeito, encostei no balcão e pedi uma cerveja, já imaginando como sair daquela enrascada.

O rapaz ouviu o meu pedido, tirou o chopp em uma caneca enorme e, ao invés de me servir, jogou em cima do balcão, à minha frente. Este foi o primeiro e único banho de cerveja que tomei na vida. Molhado da cabeça até a cintura, em fração de segundos minha cabeça começou a funcionar para sair daquela enrascada, pois além da atitude grosseira e violenta do rapaz do bar, quem estava no recinto começou a esbravejar, onde o palavrão mais ameno foi “filho da puta”.

Pensei em argumentar, porém com dois problemas. O meu inglês era curto e, senti que quem estava ali não tinha nenhuma intenção em ouvir nada.

Quando já imaginava um pique até a porta, eis que, como por milagre, entram no recinto, Moraes – com sua inseparável peruca black power -, Sérgio, Alves e, se não me engano, Édson Trombada. Todos negros.

Quando me viram, me abraçaram, pegaram minha caneca de chopp – ainda pela metade, a outra absorvida pela minha camisa – e dividiram em goles o que restava.

Enquanto continuava abraçado por eles que, até então desconheciam o meu drama, o ambiente, como que por milagre, foi voltando ao normal.

Enquanto as pessoas voltavam a conversar, o rapaz do bar serviu outro chopp e, com enorme delicadeza colocou à minha frente, se desculpando e perguntado de onde nós éramos. Respondi que brasileiros, ao que ele concluiu: “Não sei onde fica o seu país, mas tenho inveja dele”.

Ali varamos a madrugada. Era dia de folga. Um episódio que poderia ter terminado em tragédia, teve final adorável, com todos cantando abraçados. Naquele bar tive a noção exata da dor dos negros americanos, do quanto devem ter sofrido e o quanto devem ter sido humilhados.

Embora o mundo tenha mudado, de um negro ter sido eleito presidente dos Estados Unidos, é muito triste constatar que aquela desgraça do racismo ainda está viva.

Claro que não devemos nos calar. O protesto é válido, pertinente e, a única arma que temos para deixar bem claro para o mundo que alma não tem cor.

Desculpem ter me alongado e mergulhado em tema tão profundo que, até hoje, rememorando, me emociono.

Da próxima vez, para relaxar, repito a história de Samuel, o camisa 10 do Bangu.
O que fez Samuel além de muitos gols e grandes passes?
Arrancou uma linda mulher, exímia na dança do ventre, de um príncipe árabe.
Como história de amor no futebol, esta é imbatível.

Bom terminar tendo o amor como tema, não?