De um lado um tapetão tosco. De outro uma revolução no futebol mundial. É fácil saber quem é o campeão de 1987

(Reprodução da internet)

Amigos do blog:

Por favor, já que o tema voltou a fazer parte da pauta da semana, leiam com a máxima atenção, neste texto brilhante, a visão do companheiro e amigo Eduardo Bisotto, sobre a mais ridícula discussão da história do futebol brasileiro.


“Recebi no final do ano passado, de presente do amigo Kleber Leite, o livro “1987: A História Definitiva”. De largada, o título parece pretensioso. Após a leitura de suas 307 páginas, a conclusão é inescapável: não há nada de pretensão ali. É apenas mera constatação. Assinado pelo diplomata rubro-negro Pablo Duarte Cardoso, o livro não é daqueles que deve ficar restrito ao público flamenguista. É uma obra prima que contribui, e MUITO, para a compreensão da maior paixão nacional, o futebol.

Cardoso não deixa pedra sobre pedra naquele ano. Sua pesquisa abrange desde o ambiente político em que vivíamos, passando pela estruturação da Copa União, comparando com a maneira pela qual o futebol se organizava mundo afora e desmontando e explicando nos mínimos detalhes as questões legais. Sua conclusão no aspecto legal é devastadora e precisa: o problema é que a questão foi julgada por diletantes, pessoas completamente alheias às questões esportivas, incluindo a própria legislação brasileira a respeito e que mesmo assim não se viram impedidas de julgar o caso. 

Comecemos do começo: a Copa União de 1987 foi a salvação da lavoura em um ano de absoluto caos na CBF de Nabi Abi Chedid e Octávio Bulhões. Os mandarins do futebol brasileiro na época tinham em mãos uma Confederação falida, dependente de dinheiro público via Loteria Esportiva e em confronto com a FIFA de João Havelange. O descalabro era tão grande que a dupla brincava de revezamento na Presidência: ora era Octávio o Presidente, ora era Nabi.

Com o ano andando e sem um puta pila em caixa para organizar uma competição nacional, Octávio chegou a declarar de forma peremptória: se dependesse da CBF, não teríamos Campeonato Brasileiro em 1987. Para só ser desautorizado por Nabi quando a coisa já estava andando.

Se hoje muitos se deslumbram diante da gestão do Flamengo, certamente é o desconhecimento da história o motivo. Quando se vê o nível da gestão de Márcio Braga, as ideias que ele levou adiante, não só para o clube, mas para todo o futebol brasileiro e o nível das figuras que envolveu, como João Henrique Areias, diretor de vendas da IBM do Brasil na época e responsável pelo marketing da competição, se descobre que o Brasil, há exatos 31 anos, dispunha de gênios muito à frente de seu tempo.

Para quem gosta de gestão esportiva o livro é absurdamente apetitoso. Talvez por isso eu o tenha devorado em uma tarde. Foi na Copa União que pela primeira vez na história do futebol brasileiro se tratou da venda dos direitos de televisão de forma séria. Até então, a maioria dos dirigentes de futebol consideravam a TV como concorrente e viam no estádio sua principal fonte de receita. Inclusive o presidente do meu Inter na época, Gilberto Medeiros, era radicalmente contra a negociação entre o Clube dos 13, capitaneada por Areias e a TV Globo.

O choque vai ficando cada vez maior quando descobrimos que a Premiere League, liga independente dos clubes da Inglaterra, só foi criada em 1992. Ou seja: o Brasil estava cinco anos à frente daquela que hoje é a Liga mais forte do planeta, com aquele que é reconhecidamente o campeonato mais forte e disputado do mundo. Tudo obra e graça dos 13 e tantos quantos se juntaram na aventura, Rede Globo incluída. 

Mas então, aonde a coisa toda descambou? Naquilo que sempre descamba no Brasil: politicagem, mesquinharia, falta de visão de conjunto e de longo prazo. Descambou com Eurico Miranda pulando a cerca: de dia, almoçava com o Clube dos 13 e era seu aliado, de noite, jantava e dormia com a CBF. De um ponto de vista cínico, até poderíamos dizer que Eurico fazia o quê fazia no interesse maior de seu clube e por isso mereceria respeito. O fato é que, se ganhou campeonatos e tamanho graças à aliança com a CBF, olhe-se o tamanho que o Vasco está hoje. 

Descambou com uma Constituinte que se tinha Márcio Braga lutando por uma legislação esportiva moderna, tinha de outro vários deputados fazendo lobby para manter as Federações estaduais de pé. Justamente as maiores interessadas em sabotar os clubes.

Descambou na falta de apoio político. Mas não na falta de seriedade do evento.

Para uma resenha do livro, que é o que eu me propunha neste texto, já estou ficando longo demais. “Mas e o Sport, cadê?”, há de perguntar quem me acompanhou até aqui. O Sport não existe no contexto do verdadeiro Campeonato Brasileiro de futebol de 1987. 

DEPOIS que os 13 organizaram a competição, da qual o meu Internacional foi vice-campeão, a CBF de Nabi e Octavio Bulhões saiu feito vaca-louca para tentar retomar o controle. Teve de sabotagem no calendário a regulamento clandestino, passando pela tentativa de impedir a Globo de transmitir as partidas negociadas com o Clube dos 13. Numa tentativa de apaziguamento, a grana que ajudou com que o Sport jogasse a Série B acabou vindo de uma fatia do que os 13, numa gestão não vista até então nestas plagas, conseguiu levantar para o Campeonato.

Mas por quê ainda discutimos o Campeão Brasileiro? Bom, eu resumiria numa frase: é que o Brasil tem uma dificuldade imensa para ser minimamente sério.

No meio das idas e vindas da relação mais do que conturbada entre os 13 e a CBF, foi proposto que a vaga na Libertadores do ano seguinte fosse decidida entre Campeão e Vice da Copa União (módulo verde só na cabeça da CBF) contra campeão e vice do módulo amarelo (na prática, a Segundona). Os 13 toparam porque já estavam de saco cheio de discutirem por tudo e, a bem da verdade, naquele ano ninguém tava nem aí pra Libertadores, uma competição deficitária e que só dava prejuízo aos participantes.

Eis que no final do campeonato, a dupla Nabi-Octávio informa: o quadrangular não seria mais apenas pra decidir a vaga na Libertadores. Seria para decidir quem era, de fato, o Campeão Brasileiro de 1987. Alguém em são consciência duvida de quem venceria o título, de qualquer modo, num quadrangular envolvendo Campeão e Vice da Série A contra Campeão e Vice da Série B? Ainda mais em 1987, quando clube grande não andava nas divisões menores. 

Mas então, por que Flamengo e Inter não jogaram? Primeiro, porque como dito anteriormente, não estavam nem aí pra Libertadores, uma competição tão quebrada quanto era o próprio futebol brasileiro da CBF de Nabi-Octávio. Segundo, porque não foi esse o combinado. E terceiro, porque se a legislação da época fosse respeitada, o Campeonato que começava em um determinado ano deveria terminar naquele mesmo ano. Além de tudo a ideia de um quadrangular para decidir o título era ilegal.

Fecho com um desagravo muito bem feito pelo livro ao comportamento do Kleber como Presidente do Flamengo, quando o Sport foi aceito no Clube dos 13 em 1996, agora infelizmente transformado numa mera associação para dividir os direitos de televisão. Para um novo clube entrar, era exigida a unanimidade dos votos. À época (e pelo que entendi do texto até hoje, ainda), alguns acusaram Kleber de capitular diante do Sport, já que poderia ter vetado a sua entrada. A história contada pela própria ata da reunião não é esta.

O Sport, cuja conduta dos dirigentes deveria envergonhar qualquer torcedor com um mínimo de decência, comprometeu-se na reunião a reconhecer o Flamengo como seu campeão. Chegou a assinar um documento reconhecendo isso, documento que inclusive foi utilizado pela CBF para reconhecer provisoriamente o título rubro-negro. Entretanto, o Sport deu pra trás e resolveu deixar o dito pelo não dito. O gigante que mostrou que sua palavra não valia nada foi Luciano Bivar, Presidente do partido pelo qual Jair Bolsonaro pretende ser candidato a Presidente da República e presidente do Sport na época. O mesmo Bivar afirmou em 2013 que pagou propina para que Leomar, volante do Sport do qual ninguém mais lembra fosse convocado para a Seleção por Emerson Leão em 2001.

1987 tem um Campeão Brasileiro e um Vice. O Campeão é o Clube de Regatas do Flamengo. O Vice é o Sport Clube Internacional. Qualquer torcedor de clube grande com um pingo de vergonha na cara é moralmente obrigado a reconhecer isto. 

Já os nanicos podem se divertir com o outro nanico que ganha um título no tapetão, julgado por gente que não faz a menor ideia sobre questões esportivas básicas, inclusive as legais e 31 anos depois que o verdadeiro campeão comemorou. 

Encerro conclamando: rubro-negros ou não, leiam o livro. É uma aula magna sobre a história recente do futebol brasileiro.”

Eduardo Bisotto