Obra de arte

Quero dividir com os amigos do Blog o texto genial de Joaquim Ferreira dos Santos, publicado no segundo caderno de O Globo de hoje, 29/05/23.
Para quem ama o futebol, um poema…


 

O que foi que só o Galvão viu

Salve Vini Jr, salve a elegância de Paulo Henrique Ganso, salve o toque de primeira do Arrascaeta, e salve Galvão Bueno, na figura de quem cumprimento todos os locutores de futebol, essas vozes que há décadas enchem de palavras o maracanã da minha memória e agora – autoriza o árbitro, rola a bola – vão ajudar para que, dentro das quatro linhas desta crônica, eu não frangue, não manquitole, não marque contra as próprias redes.

Que ao ponto final, ao trilar do apito de sua senhoria, ao apagar das luzes do maior estádio do mundo, o resultado me seja favorável e o leitor, agradavelmente surpreso, grite “Olha o que ele fez!”, bordão de Galvão e título do ótimo documentário sobre a vida do narrador, estreia do Globoplay.

O locutor de futebol é uma das vozes formadoras da língua nacional, um artilheiro de expressões, ripas nas chulipas que atacam com bom humor, com o coração na ponta da chuteira, os carrinhos por trás do cotidiano. Aprendi a decifrar com eles o país que se esconde por trás do drible da vaca e também a ciência de chegar lá onde a coruja dorme e, pimba na gorduchinha, estufar o véu da noiva.

Lá se foi a Tina, lá se foi a Rita, o tempo regulamentar da existência vai se esgotando para os que curtiram a arte dessas mulheres incríveis, e cada vez mais me ribomba nas orelhas o chamamento de urgência à vida que vinha do alto da cabine refrigerada do Maracanã. Adornada pelo efeito do eco, a voz potente de Waldir Amaral gritava, dramática, o que só os arquibaldos entendiam como uma simples contagem do tempo de jogo: “O relóóógio maaaaaaarca!”.

Aos estudantes de jornalismo que pedem dicas da profissão, ofereço os perfis de Gay Talese e os relatórios de Graciliano Ramos em Palmeira dos Índios, mas acima de tudo lembro o desafio que o locutor Silvio Luiz propunha ao repórter atrás do gol. Foi no tempo em que cabiam 150 mil pessoas no Maracanã, 300 mil olhos vigilantes. Mesmo assim Silvio Luiz exigia superação de perspicácia ao perguntar ao profissional lá embaixo: “O que foi que só você viu?”. Em uma frase, eis a essência do jornalismo.

Uma nação se faz com homens, livros e locutores de futebol narrando embaixadinhas, passes de trivela e pênaltis batidos com a bola para um lado e o goleiro para o outro. Nelson Rodrigues dizia que “Cego é quem no futebol só vê a bola”. Eu, peladeiro da bola de meia enchida com jornal, eu diria que surdo é quem não ouve na voz dos locutores os capítulos fundamentais das glórias e dos 7 a 1 da história do Brasil.

Um deles, Luiz Mendes, mais tarde “o comentarista da palavra fácil”, está ao lado de Nietzsche e Albert Camus no delicioso “O mau humor de chuteiras”, coleção de frases recolhidas por Marcelo Dunlop, num livro lançado recentemente pela Mórula Editorial. “O futebol tem suas esquinas do destino, como tudo mais”, diz o filósofo Mendes, e o documentário do Globoplay, com seus dramas e alegrias, é perfeito em mostrar isso.

Salve Galvão Bueno, e mais Oduvaldo Cozzi, Garotinho, Edson Mauro e Luiz Roberto. Salve todos os que narram a saga brasileira de enfrentar as retrancas da vida e furar os ferrolhos adversários para um dia, solidários, gritarem com a gente que tá lá, golaço-aço-aço, tem peixe na rede. Indivíduo competente, esse JFS!

Joaquim Ferreira dos Santos